Asa Branca
Por Cristina Moura
Estou tentando compreender, nos meus estudos e práticas de análise textual, como é que certas produções conseguem expressar, de forma simples e admirável, sentimentos tão diferentes entre si. Um exemplo: a canção Asa Branca, que consegue ser, ao mesmo tempo, trágica e bela. Fico me perguntando como é que esse poema musicado, com expressões tão tristes, torna-se, na mesma medida, tão excepcional. Pretendo descobrir. Esse nosso presente, composto por Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, desfila num tapete infinito de significados. Um chamado à reflexão. Uma obra-prima.
Falar de seca no Nordeste parece fácil. Parece. Olha, e com o traquejo da Asa Branca, nunca se fez semelhante. O texto encerra uma espécie de paradoxo para os professores mais engomados; não no meu caso, ainda bem. O que percebemos, numa aula de interdisciplinaridade, são os encontros de muitas histórias. Tantos já se viram ali, no cenário proposto pelos autores, num desenho com aura de denúncia, de alerta. Sentimos o cheiro da caatinga.
Pode até não parecer, mas, em determinadas aplicações de palavras regionalizadas, o texto não deixa de demonstrar o conhecimento das normas gramaticais e o profundo respeito à língua formal. Nos dois primeiros versos, temos esse caso. O verbo olhar, flexionado na primeira pessoa do singular, no pretérito perfeito, seria, formalmente, olhei. A riqueza poética, combinando com o objetivo da canção, mostra o clamor do personagem nordestino num habitat ressecado pelo destino da natureza. O verbo adaptado passa a ser oiei. E estamos mais do que entendidos.
Um primor acontece logo em seguida, com o pronome comparativo qual. Pura elegância. Tal construção era utilizada, com certa frequência, nos tempos em que a pérola foi composta, em 1947. Nos tempos atuais, no corre-corre da fala, é coisa rara. Cada vez que ouço a obra com atenção, minha admiração aumenta. Imaginemos, pois, a terra, da qual nasce nossa sobrevivência, ardendo, em brasa. Em chamas, crepitando. Torrando, como uma fogueira, como uma fogueira de São João. Parece que o nome do santo vem como um alívio, um contrabalanço à imagem criada. Em seguida, o personagem conta que perguntou a Deus do céu por que tamanha judiação. Cria empatia imediata. Isso nos leva a perguntar junto com ele. Ainda aparece a onomatopeia ai, o som mais apropriado para a dor, numa associação íntima ao problema narrado.
Não há como negar que é uma obra inscrita na cultura universal. Mais adiante, a terra volta a ser comparada com braseiro, fornalha. O alazão, um ícone da família, meio de transporte e amigo de todas as horas, morre de sede. O gado, perdido. O narrador cita o pássaro fugitivo, a ave representada por um desejo de desistência de quase tudo. A asa branca. Mas, calma. O sertanejo-narrador prova, a seguir, o quanto é forte; tenta a sorte noutro lugar, mesmo amargando a triste solidão. Assim nos mostra a quarta estrofe.
Rosinha se despede, guardando a certeza da volta do seu amado ao tórrido sertão. Sempre rezando. Sempre esperando a graça da chuva. É isso. Apesar de tão sofrida, a canção conclui seu roteiro com o palpitar da esperança. Ouro pontilhado nas palavras e vibrações melódicas. No meio do baião, naquele balanço, nem conseguimos ficar interpretando tanto. O forró contagia. O corpo acelera. Sanfona, zambumba e triângulo. Hora de dançar. Chegue pra cá. Nossa festa.
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