Antropófagos no carnaval
Decidiram não brincar carnaval. Antes, houve muita discussão, como é, como vai ser, aonde ir, praia ou serra? Quem vai levar o quê, e cabe todo mundo nos carros? Sempre havia, no entanto, quem chamasse o feito à ordem, naquela desordenada barafunda da excitada reunião para deliberar sobre coisas práticas. Enfim, depois de muito vire-e-mexe, os amigos resolveram passar na praia os dias da festa profana. Alugaram uma casa cheia de quartos, uma varanda enorme de frente para o mar, um pomar bem cuidado. Até um pé de tamarindo fazia bela sombra. Checaram o número de pessoas e as dependências. Gente, dá pra acomodar todo mundo, disse a mãe de André, morta de satisfeita diante da perspectiva de fugir da orgia carnavalesca do Rio de Janeiro, o marido incontrolável com as saliências das mulatas no samba…
André era menino esperto.
Não completara ainda sete anos, mal aprendera a ler vivia de olhos nos gibis, em revistas e até em livros indicados na escola. Precoce o André. Chamava a atenção dos adultos não só pela curiosidade, mas também pela inteligência, aliás, estimulada pelos professores. Era o orgulho dos pais, incansáveis em propalar o sucesso do filho caçula. Certo dia, na sala de aula, a professora falou, sem mais nem menos, no episódio em que os índios comeram o bispo Sardinha. Isso mesmo, comeram o bispo português, que escapara de morrer afogado em naufrágio numa praia da Bahia, há muito tempo, quando nem o Brasil era chamado de Brasil.
A mestra falou uma palavra feia.
Palavra complicada. Da escola até chegar em casa, André a carregou na cabeça. Nesse percurso de meia hora, ele repetiu aquela palavra, seguidamente, sílaba por sílaba. Entrou, sacudiu a mochila no sofá e correu à estante do pai. A palavra pulou da mente para o dicionário:
Antropófago, aquele que se alimenta de carne humana.
Na casa da praia esqueceu. André esqueceu a palavra horrível, embora a visão do mar – o mergulho nas ondas ao lado de moças quase em trajes de índia – pudesse trazer à lembrança o infeliz bispo. Na grande casa alugada, ele não parava de brincar ou de ler, salvo quando encostava nas rodas dos homens e no meio das mulheres entretidas em conversas animadas. André ficava ali sem ser notado. Certa tarde, o teor de álcool lá em cima, os homens se pabulavam. Cada qual que demonstrasse mais habilidade, destreza, ousadia no trato com as mulheres. Você sabe, quando esses animais se juntam, o nariz de cada um cresce feito o de Fernando Collor…
De repente, André se assustou.
Ruminou alguns minutos. Inquietou-se. Lembrou do pobre bispo, comido pelos índios que nem sardinha em boca de bêbado. Pensou na mãe, ali perto, na varanda. Teve medo. Não, não vou deixar. Correu até ela. Arfando, a mão bem segura na mão dela, puxou a mãe para um canto do terraço:
– Mainha, não se aproxime daqueles homens ali no pé de tamarindo, tome cuidado, mãe.
– Por que, meu filho, por quê?
– Ali só tem antropófago, mãe.
– Antropófago!
– Sim, sim, eles só falam em comer mulher, eu ouvi tudo, tudo. Até papai.
P S – Desejo a todas as pessoas um bom carnaval, onde quer que estejam. Nas ruas ou nas praias. Na folia, no repouso ou no retiro espiritual. Aos leitores, cuidado com os filhos pequenos, eles traduzem conversas de antropófagos… E às leitoras: nada de medo, é tudo conversa fiada. Papo de antropófago…
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