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Francisco Cartaxo

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A velhinha e a manga espada

08/02/2020 às 22h18

Coluna de Francisco Cartaxo

Passo miúdo, quase arrastando os pés, a bengala firme ao andar na calçada. Sozinha. Ouvidos atentos ao pequeno movimento de carros na avenida, tranquila àquela hora da tarde de domingo. Sem pressa. Aqui e ali, parava diante de casarões avarandados e muitas árvores, que resistiam à modernidade urbana, infestada de edifícios no, ainda bucólico, bairro de classe média. Suspiros, profundos suspiros escapavam da alma. Já morei numa dessas casas, recordou, longe daqui. De repente, a memória se encheu de tumultuadas cenas, afloradas agora com impressionante nitidez. Na minha idade, filha, eu me lembro bem das coisas da infância, a voz da mãe lhe chegou sussurrada. O lenço acudiu os olhos embaçados, ajudando a velhinha a retornar à realidade e continuar os passinhos na larga calçada da avenida.

O sol ainda iluminava o cair da noite.

Seus olhos, porém, brilharam mais que o sol, por entre as grades do portão. A bengala encostada na mureta, segurou o gradil de ferro com as duas mãos. Abriu os lábios, suavemente, ao descobrir a manga espada dependurada no galho. Sentiu arrepios. Manga comprida, amarelada, pronta para ser chupada, antegozou, a saliva aumentando na contemplação interior do passado, os olhinhos da alma a enxergar antigas paisagens sertanejas, ela no controle de inusitadas cenas, agora, embaralhadas em sua mente, as mãos firmadas na grade do portão, a alma distante em rebuliço, o corpo todo dominado por incontrolável estremecimento vindo de recantos amorosos d’alma.

– A senhora está bem? Senhora, a senhora está se sentido bem?

A voz de angústia do jardineiro saiu tremida, ao vê-la ali, parada um tempão, ele na expectativa de uma palavra qualquer, quem sabe, é alguém da família… A senhora deseja entrar? Quer que eu abra o portão… talvez um copo d’água?

Abriu um leve sorriso de felicidade!

Parecia retornar de um idílio longínquo, vivido com profunda intensidade, que impregna o coração, a alma, o corpo, a vida toda. Para sempre. Diante daquele homem desconhecido, surpreso e nervoso, um suspiro arrancado do passado distante, precedeu a um não, não, não precisa abrir o portão, só estou gozando a visão daquela manga espada, ali, olhe, balançando, disse, a mãozinha trêmula na direção da fruta que provocou, agora, tamanho deslumbramento, muitos anos após encantados amores, renascidos diante de uma simples manga espada suspensa no galho, ali perto, mas longe do seu alcance.

– Você me pega aquela manga?

Pediu sem acanhamento. Mais que depressa o homem puxou a fruta e a entregou com carinho, feliz da vida, aliviado por saber que a velhinha estava bem. Ah, meu senhor, muito obrigada… era assim que eu colhia manga lá em casa e levava para chupar com prazer, porque manga espada não serve para comer cortada à faca. Manga espada, falou, nem redonda nem grande, é muito boa pra gente chupar, o senhor entende? O caseiro fez que sim, sem muita convicção, um riso abestalhado.

Ela riu com malícia.

Agradeceu e se foi. Ouvidos indiferentes ao barulho em seu redor. Nada atraia mais sua atenção. Uma manga, uma simples manga espada cresceu, cresceu, e tornou-se exuberante objeto de estimação. A velhinha seguia no passo miúdo, pés quase arrastados na calçada, a bengala firme na mão esquerda, a mão direita a apalpar a manga, alojada na bolsa à tiracolo. Riu de felicidade e segredou a si mesma: hoje eu faço a festa. Como antigamente.


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
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