A tecla do tempo
Por Cristina Moura
Cada pauta rende uma crônica. Isto é certo. Líquido e certo, como gostam de repetir os amigos juristas. As coisas que posso contar, vou contar. Procuro seguir o manual do bom repórter, que é aquele que sabe guardar. Muita gente acredita que é o que sabe soltar. Não. Não é. É o que guarda a sete chaves, a milhões de chaves, no fundo de um oceano de palavras, uma preciosa informação, que talvez seja compartilhada. Talvez. Aprendi isso com meus professores e editores, e o dia a dia ilustra e confirma. É preciso, porém, estar alerta.
O professor Carmélio Reynaldo Ferreira era um pouco temido no Departamento de Comunicação Social da UFPB. Muitos alunos torciam os bicos para ele. Fui investigar o porquê dessa quizumba. Comecei a observar. Descobri o enredo: preguiça. Era esse o temor. O professor, exigente na sala de aula, cobrava produção. Mas preguiçoso detesta produzir. Preguiçoso tem horror a tarefas. Fica logo zangado. Treinamento é surra, leitura é fardo, lição de casa é violência. Pensei, de cara: esse aí vai ser meu orientador.
A técnica é nossa amiga, não nos esqueçamos. Aprendi caligrafia no treino. Um, dois. Um, dois. De novo. Um, dois. Um, dois. Vamos. Nem imaginaria que seria parte de mim. Um, dois. Um, dois. Atenção. Aprender a obedecer. Aprender a ler. Aprender a escrever. Aprender a ser. Hora para isso, hora para aquilo, ordem na casa, ordem no quarto, ordem nos brinquedos, cuidado com os cadernos. Aprendi datilografia no treino. Depois foi difícil desgrudar. Olha eu aqui, como se o teclado fosse um pedaço da alma. Às vezes, acho que é de comer.
Foi por causa dessa onda de treinamento, desde criança, que nem estranhei. A convivência com o mestre foi sopa. Quem estivesse ali, falante ou amuado, tinha que trabalhar. No Questão de Ordem, jornal-laboratório da disciplina que ensinava a técnica da reportagem, estudamos as posições hierárquicas de uma redação e a construção das pautas. A sensação das entrevistas. O valor do garimpo pela notícia. O furo da reportagem. O respeito incondicional ao leitor. O tratamento com as fontes. Além disso, praticamos diferentes narrativas, com títulos e subtítulos, combinando textos com ilustrações e fotos.
Certa vez, fui pautada para ir a uma livraria chamada Conspiração Aquariana. Lugar mais parecido comigo, quase impossível. A loja, cujo nome nasceu em homenagem ao livro da norte-americana Marilyn Ferguson, pertencia a João Henrique de Almeida, um velho amigo de Carmélio e que se tornou meu amigo também. Virei frequentadora. Não era bem uma livraria como as outras. Era um estilo de vida. O lugar vendia livros novos. Vendia também revistas de excelente qualidade. Havia pilhas e pilhas de LPs. Coleção. Ouvia-se música clássica.
Vemos, portanto, que era uma livraria diferenciada. Sempre um incenso aceso. A canção duelava com o arrastão dos pneus no viaduto. Mas ali era o habitat do dono que, por entre as estantes, passava o dia inteiro e almoçava e merendava e meditava. Era também um ponto de encontro de intelectuais. Funcionava no final de uma pequena rampa, paralela à Rua Miguel Couto, Centro de João Pessoa. Quase uma oca subterrânea, à esquerda de quem vai para a Rodoviária, próxima a uma lanchonete que servia um joelho italiano delicioso. A matéria fluiu, claro. João com aquele cabelo grisalho e cheio, um olhar verde-cana e um aspecto de filósofo. Reynaldo é muito engraçado, brincou.
No último período do curso, chamei Carmélio para me orientar e nasceu o Projeto Experimental, que alguns cursos chamam de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). A tecla do tempo: a fusão do jornalismo e da literatura na crônica. Foi batizado assim. Considero meu primeiro ensaio, minha primeira obra. Muito imatura ainda. Mas foi isso mesmo. Cheguei, de mansinho, para o professor, ao convidá-lo: quero fazer um ensaio literário. Ele disse: pois mande brasa.
Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.
Leia mais notícias no www.diariodosertao.com.br/colunistas, siga nas redes sociais: Facebook, Twitter, Instagram e veja nossos vídeos no Play Diário. Envie informações à Redação pelo WhatsApp (83) 99157-2802.
Deixe seu comentário