A suave morte de dona Célia
“Que Deus te dê uma boa morte”. Difícil encontrar alguém do Nordeste, em particular do interior, que não tenha dito ou ouvido essa frase, que expressa o desejo ao próximo de um desfecho terreno com naturalidade confortante. Isso me lembrou um sobrinho que tem raízes plantadas no sertão e, como eu, as cultiva com a seiva do amor e da saudade. Secular costume da nossa gente, exercitado desde criança. Foi assim, exatamente assim, que findou seus dias cá embaixo, Célia Mendonça Galvão, minha sogra, aos 89 anos de idade.
Domingo, no final do Fantástico, ela se levantou, com a dificuldade própria de convalescente idosa, deu alguns passos e voltou a sentar-se. Em minutos, arriou o pescoço para um lado e assim permaneceu. Não soltou grito. Não chamou a filha. Não emitiu um som. Nem um gemido deixou escapar. A cuidadora estranhou o pescoço caído por cima do ombro. Sussurrou: dona Célia, dona Célia… e segurou sua mão. Um grito foi a reação instintiva. Corremos todos em socorro, o pulso, o pulso, cadê o pulso, depressa o aparelho de pressão. Zero, meu Deus, deve estar com defeito, tira de novo… zero.
Não, não era defeito do tensiômetro. Os anjos de branco e máscaras, feito astronautas neste tempo incerto de pandemia, apenas confirmaram. Em fração de minuto, o balanço negativo de cabeça veio simultâneo à inevitável frase, pronunciada em jeito de desculpa, dirigida à filha:
– Senhora, não podemos fazer mais nada.
Célia Mendonça Galvão era carioca, mas morava no Recife desde 1972, quando veio com o marido, Severino Galvão, e os dois filhos adolescentes, Célia Maria e Sérgio Ricardo. Galvão era um potiguar que migrara para o Rio de Janeiro, em plena Segunda Guerra Mundial. Viveram juntos, os dois, 66 anos, em casamento só desfeito pela morte de Severino, em 2018. 66 anos sem ausências, salvo esporádicas viagens do marido. Impressionante era o tipo de relação amorosa cultivada e proclamada pelos dois. Na velhice adoravam andar de mãos dadas. “Casal vinte”, invejava a vizinhança, à passagem dos cabeça branca, a atrair olhares e comentários.
Há dois anos, Galvão faleceu, após declínio acelerado causado pela idade e por um câncer, curado depois de eficaz tratamento. A partir daí dona Célia começou a dar sinais de desânimo. É verdade que pesou também a perda de amigas de muitos anos, que a idade e doenças começavam a dispersar. Mesmo assim, dona Célia reagia bem a algumas situações criadas pela filha: novas amizades, a frequência à igreja da Harmonia, próxima da qual passou a residir nos últimos anos.
Distante das duas irmãs que lhe restavam, uma no Rio, a outra no México, dona Célia tinha seus espaços sociais a cada ano mais limitados. E agravados pela dor de perder velhas amigas, muito chegadas, com as quais compartilhava caminhadas diárias na orla marítima e reuniões sociais e religiosas. A comunicação fácil, via internet, era tão só um precário consolo que não substituía o calor presencial.
Dona Célia teve um alento ao vir morar com a filha, o genro e a neta. Não cansava de exaltar o novo aconchego. Apesar do isolamento e dos cuidados redobrados, nesta quadra de terrível pandemia, em abril contraiu o coronavírus, que, graças a Deus, não lhe afetou o pulmão. Saiu do hospital, exibindo o cartaz: “eu venci a covid-19”.
Mas o coração, que já vinha perdendo arranco, foi cansando, cansando até parar suavemente. Deus lhe deu uma boa morte. Agora resta o vazio.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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