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Francisco Cartaxo

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A quietude da madrugada

14/09/2020 às 08h53 • atualizado em 14/09/2020 às 08h54

Coluna de Francisco Cartaxo

A voz da rua me despertou. Voz de bêbado, evidenciada no vai e volta da lua na canção, tal qual o amor distante a esmaecer e renascer no brilho do astro, cúmplice de uma paixão inapagável. Lua bonita se tu não fosse casada eu preparava uma escada pra ir no céu de beijar… E se colasse teu frio com meu calor pedir a Nosso Senhor para contigo casar… Pra que casaste com um homem tão sisudo, que come, dorme e faz tudo dentro do teu coração. Não, ele não cantava essa música do patrono da ACAL, Zé do Norte, ingênua e romântica. Cantava outra, inventada na hora. Escuto, deitado na rede, enquanto imagino que o boêmio caminha em ziguezague no leito do riacho Cajazeiras.

Isso faz décadas.

Agora, levanto a vista da tela do computador, com dificuldade de continuar o mergulho no século XIX, cercado de figuras de nossa história, com as quais tenho convivido há um bom tempo. Na varanda, afasto os fantasmas. A lua espalha seu véu na madrugada recifense, dourando a quietude da noite. Respiro que nem aluno de ioga, encho de ar os pulmões e solto devagar. Nisso passa um notívago. Meu bairro é pródigo em bares e botecos.

– Vá a puta que pariu, caralho!

O grito forte desafogou o peito do solitário passante, a espalhar na rua vazia a angústia presa na alma. Por mais que apurasse os ouvidos, só percebi murmúrios, oscilando feito a brisa suave a festejar-se nas palhas das palmeiras imperiais do prédio vizinho. Acompanhei com os olhos, cá de cima, os inseguros passos do estranho, até perdê-lo de vista.

A quietude voltou.

Retorno à tela. Com dificuldade tento me concentrar na escrita, aquele grito dolorido da alma ainda faz eco. O silêncio da madrugada, porém, me ajuda. Pouco a pouco vou retomando o ritmo de trabalho, o suave e continuo rumor da ponta dos dedos no teclado indica que supero a desatenção. Os personagens da história de Cajazeiras voltam a minha mente e tudo começa a entrar no eixo da normalidade. Sigo em frente. Ora, não me impus prazo para concluir o livro, isso me faz suspirar, em jeito de alívio.

Latidos de cães no meu prédio, com resposta na vizinhança são frequentes, mesmo de madrugada. Latidos muito diferentes dos lânguidos urros de vira-latas do sertão, à imitação de lobos de histórias infantis. Pouco importa que sejam caçadores de sítios ou a matilha que desfila rua acima rua abaixo na cidade, à espera que a natureza em cio se abra para a satisfação dos instintos. Esses cães sertanejos são de outra era. Em nada se parecem com os cachorrinhos mimados, chiques pacientes de clínicas e hospitais veterinários.

A luz da lua empalidece.

Retorno à varanda. Todos dormem. No edifício em frente ao meu, no entanto, há forte iluminação, mas não diviso vivalma, embora algo se mova e não é por causa do vento. Um bicho. Animal grande. Seria uma onça? Uma onça a equilibrar-se no parapeito da varanda do vizinho de frente. Impossível. Gaviões são recorrentes aqui, à luz do dia, e é fácil explicar. Eles voam para a cidade em busca da caça cada vez mais escassa nas áreas rurais. Mas onça, nem pensar.

Alucinação?

Não é onça. É um gato inquieto porque o deixaram preso no terraço. Só isso. O resto é meu cansaço. A lua cada vez mais pálida. Já começa a clarear o horizonte para o lado do mar. Largo tudo e fico gozando o resto de quietude da madrugada. Os ônibus começam a fazer barulho.

Hora de preparar o café.

Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

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Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

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