A menina do cachorro, quem diria
Anda sumida. A menina escafedeu-se. Há muito tempo que não vejo seu desfilar de garça a segurar a cordinha do cachorro, no ritmo da necessidade fisiológica do cão, a alegria de libertar-se da prisão caseira no bairro de Casa Forte. O porte esbelto em feição de palmeira imperial, as folhas ao vento, se mal compare o esvoaçar dos cabelos longos. Linda. A menina de lo perro, amante da literatura latino-americana, anda sumida. Quanto tempo? Mais de um ano? Talvez. A falta daquela figura esguia, na minha rua, esse tempo todo, não me fez esquecer as migalhas de papo que levamos. Fiapos de emoção trocada em poucos instantes de conversa. Chegamos a descobrir afinidades, apesar da distância enorme a nos separar, ela mais nova do que minha neta, a sonhar, quem sabe, sonhos de fada. E eu no preparo da morte. Na certa já concluíra o curso de direito e, agora, assume seu lugar na selva da concorrência, nesta sociedade briguenta por empregos e trabalho, em tempos de elevado desemprego.
Tudo isso eu ruminei.
Na varanda o olhar perdido, só pensei. Premunição? Quem sabe, fantasias antecipando a realidade iminente. Minha vista corre de um canto a outro a procura do tudo. E nada. Estaria ela no exterior? Na Europa! Sim, na Polônia, em busca de algum sinal de Ana Teresa, a filósofa americana de origem polonesa, casada, mãe de três filhos, que, durante 30 anos sustentou correspondência com Karol Wojtyla, desde que o papa leu um livro escrito por ela. É isso, claro, a menina deve ter ido à Biblioteca Nacional da Polônia para deleitar-se com algumas das centenas de cartas dos dois: o papa e a escritora. Maluquice. Não, não. Ela me falou com tal entusiasmo que não seria absurdo viajar do Recife a Varsóvia, só para ler cartas!
Tudo isso voeja na minha cabeça.
O cachorro, o cachorro! Até que enfim, enxergo lá embaixo o cachorro. É ele, aquela coleira verde abacate é a dele. Que é isso? Quem segura a cordinha? Um homem. Jovem que nem ela. Alto feito ela. Bonito que só ela. Distraído em descobrir naquele rapagão algum traço conhecido, sequer vi a menina, a caminhar na mesma direção do cachorro e do moço alto, jovem e belo. Que nem ela.
Nos braços ela levava o filho.
Uma criança de poucos dias de nascido. Avalio pelo tamanho e o jeito, a exigir superproteção materna. É ela mesma. Agora, vejo melhor, nesse dia claro, sem chuva, sem nuvens a toldar o espaço de meus olhos. É ela. Então era isso! Nada de fantasia, de viagem, de busca de emoções dos outros, lá atrás, bem longe, em selo da amizade, do amor puro entre aquela moça e o papa João Paulo II. Que besteira! A minha.
A menina dos cachorros.
Não era nada daquilo tudo, aflorado em minha fértil imaginação. Nada sequer tem ligação com delírios inusitados, pensados, ruminados, remoídos em horas de saudade. Em momentos de falta. De ausência. A dor a inflamar o peito. Tudo isso, mesmo sendo engendrado dentro da alma, tudo isso perde sentido diante da vida. Quem diria, a menina de lo perro, esbelta a lembrar uma palmeira imperial, as folhas ao vento, se mal compare o esvoaçar dos cabelos longos, o olhar em jeito de atrair o amor, no exuberante encanto da idade, a menina do cachorro, quem diria, trocou pela vida, toda a fertilidade da minha imaginação. Deus ilumine seus passos. E do filho.
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