header top bar

Francisco Cartaxo

section content

A jovem de longas pernas

11/10/2020 às 09h39

Coluna de Francisco Cartaxo

O confinamento excita a imaginação. Cria e expande fantasias. Ver de longe também. Nesta época do novo coronavirus, a varanda se transforma em convés de navio. Embora sem binóculo, busco afastar a monotonia da paisagem. Agora que passou a quadra de chuvas, aqui no Recife, gozo o privilégio de usar o terraço para o banho de sol, espichar os músculos e olhar ao redor. Ah, como descubro novidades! A imaginação espanta a enfadonha rotina, voa livre, solta, sem cabresto.

O caminhão do lixo passa nos dias ímpares. Os caminhões, digo melhor, quase sempre são dois que se cruzam nas proximidades do meu prédio. Dia sim, dia não. O barulho infernal do esmagamento do lixo e o vozerio dos garis me tiram a concentração. Por minutos, largo tudo. Descanso a vista. Bebo água. Faço qualquer coisa até que a distância dos pesados veículos me liberta a mente.

A professora limpa meus olhos.

Ela estaciona a moto, mochila a tiracolo, atravessa a rua, passa pela guarita do prédio em frente ao meu e vai direto para a piscina. Ali já lhe esperam duas crianças para aula de natação. Despe-se do short, que cobre o maiô, e da camiseta; solta e enrola o longo cabelo de índia e põe a touca. Aí mergulha nas lições dos pirralhos. Primeiro treina os movimentos das pernas, depois, os dos braços. Repete. Repete… até a hora de, já fora da piscina, soltar o cabelo, enxugar o corpo, vestir o short, pegar a mochila, passar pela guarita, atravessar a rua e trepar na moto.

Volta amanhã?

Não, eu não pergunto. Só desejo.  Sigo-a até ela sumir na esquina. Não demora muito, lá vem a moça das pernas longas, cabelo em coque alto, fazendo-se parecer mais esguia e elegante. Passo cadenciado, short curto, as brancas coxas à mostra, blusa de cor discreta. Meu olhar curioso segue seu trajeto de mais ou menos 100 metros. Passa sempre na mesma hora. Caminha sem pressa, como se medisse cada passada. Só muda quando surge algum veículo na Visconde de Ouro Preto, uma rua mixuruca e curta tanto quanto foi a sua passagem presidência do Conselho de Ministros, o último Gabinete do Império, às vésperas da proclamação da República. A jovem usa trajes simples, de tecido comum, pequena sacola, pendurada no ombro, a cobrir uma parte da bunda. Nunca a vi de jeans. E só uma vez ela vestia calça comprida. Única vez, nesses meses em que a espio.

Onde será que ela trabalha?

Já tive vontade de programar um encontro casual. Descer do apartamento, atravessar a rua, justo no momento em que ela desliza seus passos cadenciados de musa. Como abordá-la? Bom dia… Não. Soaria coisa do século XX! Alô, menina, vejo você passar aqui todos os dias… Ridículo. Ei, moça, mate minha curiosidade… Desisto. Pobre imaginação!

Rumino as longas pernas à distância.

Sábado na feira de produtos orgânicos, na Praça da Casa Forte, preocupado com o invisível coronavirus, apresso a compra de batata doce, alface, rúcula, banana, caju, enfim, verduras e frutas. E até de pamonha! De repente, ouço uma voz a meu lado, o senhor costuma comprar esta macaxeira? A mão aponta a caixa de onde eu acabara de sacar dois sacos plásticos de macaxeira n’água. A voz não era familiar, as pernas sim. Longas e brancas. Ah, sim, sim, sempre compro aqui… pode levar sem medo. Foi o que me ocorreu dizer com um tremor. Muito obrigada… Então pude ver, de perto, as longas pernas se afastarem com a macaxeira de seu Raimundo. Não sem antes, haver um esboço de riso, escondido atrás da máscara, e um olhar cruzado no burburinho da feira.

Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL


Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Sistema Diário de Comunicação.

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Francisco Cartaxo

Francisco Cartaxo

Francisco Sales Cartaxo Rolim (Frassales). Cajazeirense. Cronista. Escritor.
Trabalhou na Sudene e no BNB. Foi secretário do Planejamento da Paraíba,
secretário-adjunto da Fazenda de Pernambuco. Primeiro presidente da
Academia Cajazeirense de Artes e Letras. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. Autor dos livros: Política nos Currais; Do
bico de pena à urna eletrônica; Guerra ao fanatismo: a diocese de Cajazeiras
no cerco ao padre Cícero; Morticínio eleitoral em Cajazeiras e outros
escritos.

Contato: [email protected]

Recomendado pelo Google: