A catadora de lixo e mito de ocasião
Por Francisco Frassales Cartaxo
Da varanda observo seu trabalho, há muitos anos. Nesta época de rigoroso confinamento pandêmico, minha atenção é maior ainda. Baixa, gordinha, de meia idade, ela chega bem cedo. Muito antes do caminhão do lixo e do zelador do prédio, onde moro, que se encarrega de levar para a calçada sacos cheios de inservíveis. De coisas inúteis para nós, produtores do lixo, não para ela, que vem com seu parceiro, mais jovem na aparência. Cada qual com suas tarefas. Ela cata latinhas metálicas e garrafas de plástico, enquanto ele sai empurrando sua velha carroça, a procura de papelão na vizinhança. Só o vejo depois. Ela, não. Encosta a bicicleta vermelha, senta-se na mureta do jardim do Morada das Oliveiras e espera pelos sacos pretos com o lixo acumulado nas últimas 48 horas, porque a coleta é feita terça, quinta e sábado.
Ela se cuida na pandemia?
Nem sempre. Ora usa luvas e máscara. Ora, nem luva nem máscara. A luva incomoda, penso com meus botões, a máscara fica pendurada no pescoço… Quantas vezes, temeroso, observei cenas assim. Deus meu, que perigo! Me encho de sobrosso. Um casal com precário modo de vida, extremamente vulnerável, por que não é contaminado pela coronavírus? Expostos, todos os dias, na luta para sobreviver num mundo de cruéis desigualdades sociais, os dois (e milhões de brasileiros em condições semelhantes) por que não são fulminados pelo vírus mortal?
Meses atrás – antes do enfarto que sofri no começo de abril -, de volta da feira de produtos orgânicos, conversei com a catadora de lixo, como se fosse uma velha amiga. Cadê ele? Perguntei, me referindo ao seu companheiro. Não veio, está em casa meio adoentado, disse. Vocês têm filhos?
– Deus não quis me dar essa alegria.
Foi a resposta. Curta. Segura. Reveladora da fé de uma mulher incansável, que, todos os dias, batalha com dignidade e coragem, sob a indiferença de nossa sociedade egoísta. Dignidade, aliás, nem sempre presente no dia a dia das pessoas que jogam fora o que vem a ser o meio de vida.
Impossível deixar de observá-la dia sim, dia não. Seus passos curtos se agigantam a meus olhos de cidadão. Sua resposta foi para mim uma revelação. E um sinal profético. O mesmo Deus, que não lhe deu filhos, eu desejo com toda a sinceridade, também haverá de salvá-la da covid-19. E me leva a pensar que, se deve haver punição para os responsáveis pelos milhões de mortos no Brasil, decerto, não nascerá das mãos de Deus. Virá daqui mesmo, pela destruição de mito de ocasião, inclusive por dedos humildes nas teclas das urnas eletrônicas, de gente como aquela senhora baixa, gordinha, de meia idade que luta no dia a dia para sobreviver, a proteção do Senhor.
Presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL
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