A Bodega de Alvino
Nos meus tempos de infância aquele era um templo de consumo. Um espaço fascinante e proibido. Em suas escurecidas prateleiras de madeira se escondiam garrafas de vermute e de aguardente. Num canto uma lata de querosene Jacaré e seu enigmático engenho de sugar o líquido que iluminava palidamente os cômodos da casa do meu avô Papai Manoel. Sacas de açúcar atraiam desavisadas formigas e taiocas. Um cheiro de fumo de rolo exalava de uma banca. Uma balança Filizzola se equilibrava sobre o balcão no vai e vem de quilos de açúcar, de feijão, de farinha e de carne de porco vendida na rola. Mercadorias comerciadas para todos os moradores da ribeira do Cipó e que iam envolvidas nos toscos papéis de embrulho. Um gato descuidado dormia tranquilamente sobre fardos de mercadorias aleatoriamente arrumados nas dependências do estabelecimento.
Em raras manhãs de domingo, quando os parcos recursos permitiam, na saída da missa, papai comprava um guaraná ou alguns chicletes Ploc ou Ping pong. Eram momentos de inexplicável alegria. O trajeto para Impueiras, os calos dos sapatos apertados, o sol estafante do verão, tudo era relevado em nome de uma indescritível felicidade que se refletia nas bolas da goma de mascar ou no esvoaçante sabor do refrigerante quente, mas refrescante.
Por dois anos o percurso em frente a Bodega de Alvino era meu roteiro na direção da Escola de Dona Lourdinha, que funcionava nos intervalos entre a manhã e a tarde, no grupo Escolar Lindalva Claudino, ao lado da Igreja de Fátima. A escola, freqüentada por mim, minha irmã Auxiliadora, Genival de Frutuoso Monteiro e tantos outros meninos e meninas, também tinha por alunas Rosemira e Inha de Zé Morais, e Salete e Teresa de Seu Lourival. Todos os dias, Rosimira e Inha, coadjuvadas pelas facilidades que a bodega de seu pai permitia, tinham dinheiro para comprar refrigerantes Crush e biscoitos, que eram degustados por elas e por Teresa e Salete nas moitas de mufumbos próximas a Casa de Pedoca. Para nós, driblado as dificuldades de criação dos dez filhos de nossos pais, restava apenas uma espiada esguia pelas portas abertas da bodega, onde um contumaz e assíduo freqüentador já tinha ouvido de Seu Alvino sua indefectível sentença: bebeu, cuspiu, pagou, cai fora.
A bodega de Alvino, como tantas outras que, por anos, existiram na ribeira do Cipó, de Impueiras e de tantos outros recantos dos sertões, teve sua importância como espaço fundamental de abastecimento de mercadorias para a população. Mas elas tinham também uma função cultural: eram espaços de socialização, de trocas de afetos e companheirismo entre parentes, amigos, conhecidos que, nas manhã de domingo, enquanto esperavam a pesada de carne, degustavam um gole de aguardente ao sabor de uma prosa farta. Os assuntos oscilavam entre a trivialidade do cotidiano, as expectativas dos invernos, as calamidades das secas e seus indefectíveis degredos, as safras abundantes de algodão. E, nesse ritmo, a vida se fazia e se refazia nas bordas do encardido balcão da Bodega de Alvino.
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