A beleza da estrela da manhã
Hoje não quero compromisso com a história de Cajazeiras. Nem quero saber da ACAL, de economia ou política. Muito menos da rigidez narrativa de fatos, datas ou ilações, seja de que natureza for. Adeus raciocínio disciplinado, policiado pela razão. Quero soltar as amarras do real e deixar fluir a imaginação pelos fluxos interiores até alcançar o fundo da alma. Ela me guiará nesta crônica, nascida na estrela, lá longe, bela e exuberante no seu brilho. Um brilho tão aceso quanto o olhar da menina de minha infância, uma deusa, hoje, atada à minha mente.
Quando levantei os olhos, lá estava ela no claro/escuro da madrugada. Não era dia nem noite, as silhuetas dos edifícios do Recife pareciam assombrações de Gilberto Freyre. Bem longe, a estrela aparecia a meus olhos descansados de uma noite bem dormida. Gozei sua presença, de pé na varanda do quarto, o silêncio a realçar o êxtase e a fruição da manhã, quase noite ainda. A tranquilidade ambiente se contrapunha ao reboliço interior. Um mundo de recordações me invade a alma, a remexer a memória à vista daquele ponto faiscante nas lonjuras fascinantes do universo.
A estrela da manhã me levou ao sítio Prensa de minha infância. Perto do curral de gado, meu pai e Zé Bento assuntavam o tempo, antes de começar a ordenha. Apuravam a vista tentando ver sinal de relâmpago lá para as bandas do Cariri. É bom sinal, dizia o velho, um relâmpago nessa época naquele rumo é prenúncio de inverno. Arregalava meus olhos e não conseguia ver nada parecido com rastro de luz no céu. Os dois enxergavam. E em monossílabos expressavam a alegria sertaneja. Alegria que eu carrego dentro de mim onde quer que me encontre. As marcas da infância são assim. Fincadas lá dentro num apego formidável. Tão fortes quanto olhares que se cruzam no meio do caminho. Exatamente no meio. Medidos, não pela régua, mas pelo brilho que emitem.
Um ônibus passa na rua onde moro.
O barulho me arranca do meu mundo infantil, da festa que é a visão da estrela da manhã ainda sem sol. Deve ser o primeiro carro a sair da garagem rumo ao terminal da Macaxeira, penso, tentando recompor meu gozo e me transportar outra vez às lembranças de criança. E vejo o açude, o velho açude da Prensa, do tempo de minha avó, Mãe Nanzinha, mulher do major Higino Rolim. Não conheci nem um nem outro. Desvantagem de ser ponta de rama, dizia meu pai.
Da ponta da varanda da casa da Prensa eu via passar aquela menina para o açude. Era do meu tope. Loura, cabelos soltos, olhos claros. Risonha… Bora também? Um dia ela me chamou, falando pelo irresistível brilho no olhar. Feito a estrela da manhã que ainda resiste à teimosia estraga-prazer do sol em apagar as marcas do amor e de saudade. Fui. Não tive o alumbramento do poeta Manuel Bandeira diante da moça nua a tomar banho no rio Capibaribe.
Fomos e voltamos.
E nunca mais pude afastar de mim a visão daquela menina de cabelos longos, pele clara, riso aberto, olhar de fogo. Se algum dia eu escrever um romance, ela, a menina de minha infância, renascerá, quem sabe, nas asas da imaginação, forte, exuberante, poderosa, a iluminar com o brilho de seus olhos os rumos que minha fantasia guardou na alma. E carrego aonde vou. Escondida. Um dia explode. Basta levantar os olhos e enxergar ao amanhecer aquele pontinho faiscante, que nem a visão de uma deusa, tão bela aparece a meus olhos ávidos para sentir a beleza da estrela da manhã.
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